terça-feira, 12 de julho de 2016

Porque a harmonia da coisa reside na, digamos assim, própria desarmonia da coisa. E deve ter um semideus qualquer sentado à beira do lago dos desavisados, numa dessas quebradas do mundo dos que creem, sorrindo e concordando comigo. Ele apanha uma vareta e, remexendo o remanso do espelho d'água, diz que se fosse ateu, que nem eu, também estaria caminhando assim, indeciso, entre a autopiedade e a ironia. Ironia, ah, essa arte de fino trato, ele diz: essa perversão da linguagem. E, por falar em perversão, bem. Deixa quieto. Mas como ele não é ateu, como eu - pois que não desconfia da própria concretude -, não divide comigo as mesmas impressões. Nem assiste sozinho e bufão a programas culinários da H&H - esses ícones desse nosso tempo estranho - enquanto rumina um desconfortozinho moral qualquer. Li algures que alguém tinha a sensação de que havia clicado no "aceito" sem ler o conteúdo da minuta dos termos de uso do app. Da vida. Da diva. Dádiva (ou do divã). Outro, noutro canto, que declinava da vida adulta, tempestivamente - pois que ainda se encontrava no período de experiência e, pera lá, contrato é contrato, né, declino e tchau. Mas meu amigo imaginário, aquele, o da beira do lago dos desavisados, curte beep bop, quer dizer, bebop, gosta de jazz. Daí, quando me vê estacando bem no meio do caminho entre a vaidade e a antropofagia, digo, entre a veleidade e a hemorragia, digo: entre a autopiedade e a ironia, dando uma meia-volta sobre o calcanhar a lá Michael Jackson e apanhando um CD do Charlie Parker, ele sorri satisfeito. Sorri bem arreganhado mesmo - um esgar, como diria o escritor -, se levanta, apanha o chapéu e samba. E quando dou por mim ele já não está mais ali, digo: aqui (digo: (...) ). Já que ninguém vai entender, pra que a gente vai explicar, né não? Deixa o Charlie tocar. Bora lá.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

ABISMOS

Dia monocromático. Pra ornar com os olhos do espectador. Dia bom pra escarafunchar o ninho de ratos de nossas expectativas mais sombrias, aquele limbo que alguns insistem em carregar de um lado pra outro, de um ano pra outro, de uma vida pra outra. Vou dar uma chafurdada no meu chiqueiro particular pra ver se acho alguma pérola perdida. Alguma lembrança digna de saudade. E essa porta do metrô que não fecha... Desembarque pelo lado esquerdo, diz a voz. E eu digo pra ela parar com essas partidarizações comezinhas. A minha conjuntura exige metabolização maior e mais profunda. Voz vil, viu.


terça-feira, 18 de agosto de 2015

AVENTURA ONÍRICA

Sonhei que passeava com a patroa por um palácio faustoso de Montpellier - Sul da França, região de Languedoc Roussillon. Era uma visita guiada a um palácio/museu/castelo ou algo que o valha, regado a espumantes e comidinhas afrescalhadas. Um dramaturgo paulistano de quem gosto muito aproveitava o lance pra vender discos e livros pessoais - ele deixara uma arca num dos aposentos e os produtos tinham etiquetas com letras que correspondiam a uma tabela de preços (eu havia gostado de um box do Frank Zappa, mas estava muito caro). Num dado momento me sentei próximo ao parapeito de uma janela e fiquei fitando a cidade, abestalhado com a acaralhante vista noturna das torres da catedral de Saint Pierre. Nesse momento, um pavão pousou ao meu lado, tirou uma selfie comigo e depois voou, se despenando todo na decolagem. Me perdi da patroa num das dezenas de pavimentos do negócio, mas fiquei de boas tirando fotos da nave ilustrada e escolhendo no app do celular filtros descolados para valorizar as imagens. Tudo muito lindo, muitas obras de arte, muito valor histórico intrínseco e o diabo-a-quatro. Uma amiga de Florianópolis era uma de nossas guias, empolgadíssima, mas muito chic, muito in, não descia do salto. Acordei bem antes do despertador, com uma sensação boa e o nome da cidade na ponta da língua, os fonemas se esbaldando na lembrança etérea da perlage do espumante: Montpellier... Montpellier... Montpellier... 


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

FOTOGRAFIA

Um jeito meu de interferir diretamente na paisagem, no enquadramento, no afeto e, por consequência, no que interfere em mim também. Dá pra escolher o quê e como se olhar. E, principalmente, o que se vê. São Paulo é feita dessa amorfia, depende disso e, em última instância, é a representação viva da teoria lacaniana que define o sujeito: 

o que um significante representa para outro 

significante












terça-feira, 11 de agosto de 2015

DESDE SEMPRE

Hoje fui com a patroa levar as crianças - meus enteados - para o colégio. Estacionei numa rua paralela e, enquanto ela encaminhava os pequenos para a escola, fiquei prestando atenção no movimento dos colegiais que saíam, em êxodo, do grupo escolar. Uma turma de meninos carregava à força um garoto loirinho, pequenino, menor que a média de seus pares. Levavam-no carregado pelos braços e pernas, o menino nitidamente desconfortável com a situação. Na outra ponta da rua, uns dez metros para baixo, meninas empurravam uma "colega": "Fica com ele, vai, vai lá, dá um beijo nele". Ela resistia, meio tímida, meio temerosa, recalcitrante aos apelos. Os meninos, por sua vez, diziam ao loirinho de óculos, "vira homem, vai lá, vai na esquina e beija ela. Sua mãe vai ficar orgulhosa." Súbito, as meninas e a "colega" dobraram a esquina. O menino, compelido pela alcateia, resignou-se, caminhou até ela e, juntos, entraram  na rua. Fiquei ali, dentro do carro, fumando um cigarro e observando o modus operandi da espécie adolescente, solzão no para-brisa, escutando Blame it on Me do George Ezra no rádio. A molecada estacionou ansiosa a poucos metros da esquina, um zum zum zum danado, cochichos, maldadezinhas, aquelas coisas de alcateia, de gangue infanto-juvenil mesmo. Um instante depois, o loirinho de óculos retorna da missão, silencioso, olhar fincado no asfalto: "Pegou ela?", perguntou o maiorzão da turma, provavelmente aquele garoto arquetípico do fundão da sala, o "formador de opinião" do microcosmo escolar. O loirinho acenou positivamente com a cabeça, ao que o estivador respondeu: "Aê, muleke, tua mãe vai ficar orgulhosa". Logo em seguida subiram as meninas, as "amigas" da "colega", comentando com as que ficaram de fora para assistir à torpeza: "E aí, ela beijou?" "Beijou, mano, beijou. Mó vagabunda"...
E assim a caravana segue, e la nave vá, o mundo gira, os garotões perpetuam os hábitos da espécie e a mulherada, desde cedo, cumpre a sina a que foi destinada desde o berço, engrossando as fileiras de vagabundas colegiais que se tornarão vagabundas universitárias, que um dia, quiçá, serão nossas mães vagabundas, irmãs, filhas, presidentes da república vagabundérrimas etc, etc, etc e tals.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

DI(AGNÓSTICO) - UMA AUTOFICÇÃO.

E no Mundo Blá minha crônica nova aproveita a onda da autoficção para falar um pouquinho da conveniência da fé e da nossa indefectível mania de se autodiagnosticar pelo Google, esse oráculo moderno. Confira lá, clicando aqui.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

DESPAUTÉRIO

Não pretendo vender meu celeiro. Não que não aprecie sua oferta, caro amigo, mas é que os tempos são de crise, você sabe... Forjei fianças, fraudei o fisco, assinei promissórias e o diabo a quatro, mas levantei o capital. Quando todos estavam em êxtase com as “partículas de ouro” que disseram que sopravam por aí, fiz minha parte... Não, não sou trouxa. Dormi ao relento, comi migalhas e senti o acero do aço em minhas costas. Fiquei pneumônico, perdi cabelo... Mas meu celeiro está aí. Bonito, assentado, viçoso.  Milho, soja, arroz, ervilha... De certo que a praga dos ratos me deu algum trabalho, mas vai pra mais de mês que não vejo unzinho sequer por aqui. Agora, depois de tudo isso, me aparece você e simplesmente me propõe a compra? Ah, mas não vendo. Não vendo mesmo. Isso é que não. E logo você, homem letrado, quase erudito... Escreve no Diário da Província o quanto somos provincianos – e isto certamente que me ofende, já que moro no norte da ilha, não é? –, diz que temos medo do desenvolvimento, da modernidade, mas esquece de mencionar que o tal “desenvolvimento” vem no esteio do nosso trabalho. Nas costas do labor do provinciano aqui. Não quero ser deselegante, mas você bem sabe que também não posso deixar de ser sincero. E, na maioria das vezes, a verdade dói mais que mão queimada em fornalha. E olha que minhas mãos eu já queimei e não foi uma só vez, não. Mas a língua, nunca. Nem uma única vez nessa vida inteira de cristão temente a Deus. Por isso, caro “amigo”, esqueça que eu existo e que um dia você passou por estas bandas, e que se interessou por minhas terras e por meu celeiro. Porque eu vendi minha juventude, caro amigo; vendi as poucas oportunidades de sair desse fim de mundo; vendi – a preço módico – a raspa do tacho da felicidade e quase – veja bem: quase – vendi minha alma. Mas, meu celeiro, meu caro amigo, eu não vendo. Passar bem.



sexta-feira, 31 de julho de 2015

QUINTA EM CENA

Ontem foi dia de Quinta em Cena – projeto criado pela Cia. La Plongée que apresenta, a cada nova edição, sempre na última quinta-feira do mês, três cenas de jovens dramaturgos contemporâneos. O lance acontece no Cemitério de Automóveis, o bar/teatro de Mário Bortolotto, que fica na emblemática Frei Caneca, nº 384, quase em frente à Paim - ambiente beat, aconchegante, regado a rock’n roll e Heinekein a dez pilas. Lugar bacana pra caramba, ótimo para jogar conversa fora e desfrutar da aura underground do Baixo-Augusta ao lado de figuras como o escritor Marcelo Mirisola.






terça-feira, 7 de julho de 2015

DEGRADÊ

Em São Paulo, tudo o que não é cinza grita. Clama. Avoca. Mas em São Paulo o índice de daltonismo é estranhamente discrepante da realidade nacional. Em São Paulo as pessoas reverberam a própria voz, que retorna ao emissor estranhamente deturpada, bela, racional. Aqui todos têm razão dentro de uma interação imaginária. Aqui todos fazem sentido para si próprio. Bom dia, Franklyn. Ops, bom dia Franklyn. Ei, não estou falando comigo, cazzo. E, afinal de contas, nem é um dia tão bom assim. Bola pra frente.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

BULLSHIT


Dia de rabada no restaurante do fórum. Tenho que admitir: tenho uma queda por rabo. Especialmente se bem cozido e temperado. Discretamente, no limiar da exaustão na briga entre garfo e osso, apanhei-o com as mãos e tasquei-lhe uma bela sorvida. "Kiss my ass", imaginei o bull mugindo, da área etérea correspondente ao sudoeste americano (se é que o Texas fica lá).

sexta-feira, 3 de maio de 2013

OUTRO TRECHO DO NOVO LIVRO EM DESENVOLVIMENTO



Gasto a manhã folheando revistas velhas. Retomo um romance que tento terminar há meses sem êxito, embora sempre tenha sido um leitor voraz. Ultimamente, no entanto, nunca termino minhas leituras; os livros se sucedem às dezenas e contam-se nos dedos os que li até o final de uns anos para cá. Para piorar, Nádia recrimina minhas escolhas, diz que a literatura contemporânea é vazia, feita por corações ocos, escritores sem alma. Que não há muito o que se dizer sobre a segunda metade do século XX, que não faz sentido ficar atirando a esmo na escolha de autores atuais pois o tempo perdido na identificação de um bom livro seria melhor aproveitado na certeza dos clássicos. Que os clássicos já passaram pelo crivo do tempo, resistiram à erosão das ideias et cetera et cetera. Quando tenho forças, rebato dizendo que não procuro nada na literatura, que literatura não muda o mundo, não melhora ninguém. Talvez a quem a escreva e olhe lá. E se ela diz que é mentira, que todo mundo procura alguma coisa na literatura nem que seja entretenimento, e que, mesmo na qualidade de entretenimento, os clássicos batem disparado os contemporâneos porque possuem qualidade intrínseca comprovada pela longevidade, então eu digo que o que procuro – se é que realmente procuro – é conexão. Conexão com meu tempo, conexão com meus contemporâneos, com minha geração. Que procuro, enfim, me achar, me identificar com outros corações ocos e desnorteados que vaguem por aí perdidos. Exausto, digo que não faz sentido procurar a luz no fim do túnel contando apenas com a lanterna traseira. A não ser que se trafegue de ré. E ela diz que, às vezes, parece ser meu caso. Trafegar de ré. Tira o mote da minha própria retórica.  Por fim, no limiar do esgotamento argumentativo, decido dar o braço a torcer só para agradá-la, e prometo logo mais pegar um Tchekhov na estante, um Pushkin, talvez um Turgueniev, sei lá, mas certamente um russo, pois que dentre os clássicos são eles os mais contemporâneos, por assim dizer. E desse modo abrevio os sermões de Nádia, e arranco um sorriso dela, arqui-inimiga entusiasmada da subcultura e da massificação de conteúdo. Por ela, colocava-se fogo em toda publicação que tivesse menos de quinhentas palavras por lauda e menos que quinhentas laudas por volume. Em menos que isso, diz ela, impossível desenvolver qualquer ideia minimamente responsável. Fecho o livro marcando a página 225 e rio sozinho ao me lembrar de sua entonação grave ao declarar tal pérola.

terça-feira, 19 de março de 2013

TRECHO DO NOVO LIVRO EM DESENVOLVIMENTO



Você está ficando velho, ela diz, enquanto seleciona um pelo em meu ouvido e o arranca num movimento abrupto. Nunca pensou em se casar de novo? Não, eu respondo, lacônico e sincero, tão sincero que imediatamente ela rola no colchão e se vira para a parede da janela. Desvio o olhar da revista e fito a janela na expectativa de encontrar a lua, mas minha janela não dá para fora, dá para o corredor do prédio, e a única coisa que se pode ver é a luz acionada pelo sensor de movimento, que de tempos em tempos dispara assim, de repente, sem qualquer movimento notável. Não chega a ser um problema para mim, não ao menos enquanto estamos acordados e Nádia remove os restos de esmalte das unhas sob a luz branca da luminária. Mas quando se quer dormir, nem mesmo a cortina preta de dois forros dá jeito na luz intermitente. E o jeito foi me acostumar a pegar no sono com o rosto enfiado no travesseiro, e o clac do sensor de movimento estalando de quando em quando dentro da cabeça. Sabe, um dia você vai se apegar a alguém que não te dá valor - ela diz desencostando a bunda da minha perna – e aí vai se lembrar de mim. Por que será que as mulheres são assim – penso -, sempre tão necessitadas de definições? Essa precisão de tudo preto no branco; de: sim, sou seu e você é minha; de: claro, vamos constituir um clã, garantir a descendência, financiar uma oca e fingir que trepar nem é tão importante assim quando a idade vier e o sexo se tornar insuportável. Observo a graciosidade da curvatura de sua anca. Tem que haver uma explicação psicológica para essa ânsia por definições. Alguma coisa que remonte àquela fase infantil em que a mulher percebe que não tem um pênis igual ao do papai e precisa delimitar sua descrição, definir-se enquanto indivíduo apesar da ausência fálica. Li algo sobre isso algum dia em algum lugar. Vem cá com seu tigrão, digo sussurrando em seu ouvido enquanto abandono a revista aberta no criado mudo e desligo a luminária. Imediatamente ela se retrai fingindo um afastamento maior, mas crava o rego da bunda bem em cima do meu pau e... clac. A luz do corredor acende.

quarta-feira, 6 de março de 2013

A AZALEIA E O MAR



Era apaixonado por duas coisas na vida: cheiro de mar e azaleias.
Como vivia na maior metrópole da América Latina, mantinha o odor áspero do mar guardado na memória, e desfrutava mais amiúde do perfume das azaleias.
Sabia tudo sobre elas: que eram originárias do oriente, principalmente do Japão e da China; que tinham sido trazidas para o Brasil por João Dierberger, fundador da frutifloricultura do mesmo nome em São Paulo, em meados do século passado, e que contavam mais de oitocentas variedades catalogadas. Sabia que se adaptaram rapidamente ao clima brasileiro e que se proliferavam com a mesma velocidade invadindo casas, muros, grades e jardins.
Do mar, sabia pouco. Intuía mais que sabia. Intuía o significado inconsciente que a plenitude marinha exercia sobre ele, a fascinação que a profundeza encerrava e que, em última instância, era o “desconhecer a própria profundeza”.
Porque ele era tão profundo quanto o mar e tão ansioso quanto as azaleias. Sim, pois as flores escondiam por trás das pétalas a impaciência que não as permitia esperar pela primavera para desabrochar. Apareciam intensas e escandalosas no inverno mesmo, bem antes das outras flores que aguardavam preguiçosamente pela estação propícia. Assim como ele, que atropelava o presente tentando antecipar o futuro, quando mal superara o passado.
Também como as azaleias – que foram encontradas pela primeira vez em solo ressecado – ele padecia de uma sede, que não era bem de água. E talvez por isso fosse tão fascinado pelo mar. Não pela água, densa, sufocante. Pelo “cheiro” do mar. Aquele cheiro que ele podia pressentir ainda na serra, a quilômetros de distância do litoral. Um cheiro sem perfume, sem sutileza, mas que quando invadia o pulmão lavava a alma, remetendo-o para o quarto escuro de um momento que ele não podia identificar. Talvez lembranças do gosto do líquido amniótico.
Mas em um dos muitos dias de solidão, e por circunstâncias que não vêm ao caso, praticou um crime. E, uma vez criminoso, fora indiciado, julgado e condenado. E, antes que pudesse rever o mar, viu-se trancafiado numa cela de oito metros quadrados, num destes presídios da Capital. Oito anos. Oito anos separavam-no do reencontro com o mar e com os jardins da Liberdade, de onde trazia as melhores lembranças das azaleias, brancas, roxas, vermelhas, salmão.
Certa manhã, quando não se permitia mais sequer se desesperar, levantou-se em direção à grade que dava acesso à prisão maior que eram os arranha-céus da cidade. Suspirando, baixou a cabeça batendo-a contra o aço das barras, braços estendidos para fora. Fitou o céu acinzentado, depois o que sobrava do horizonte e, por força do hábito, mirou o chão. Fora, talvez, o momento mais feliz da sua vida. Forçou o rosto contra a grade, contorcendo os olhos, ainda não acreditando no que via: bem abaixo da janela, do lado de fora da parede do presídio, por entre uma fenda muito pequena do concreto, uma azaleia perenifólia, roxa, desabrochara vibrante, mágica. Deslizou o máximo que pode o braço por entre as grades, até entalar o ombro no pequeno vão, tentando alcançar a flor. No ápice do esforço, pouco antes de relaxar os músculos e desistir da empreitada, ainda resvalou, de leve, com a pontinha do dedo, a fina pétala da azaleia.
Extasiado, soltou um gemido, depois chorou.
Ao se recompor, ainda de frente para a grade, fechou os olhos descansando a cabeça por entre duas das barras de aço que o separavam da flor. “Estranho”, pensou. Podia jurar por Deus que sentia bem leve, no vai e vem da brisa matutina, o inconfundível cheiro do mar...




quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

BORBOLETA




Não sei como ela consegue: acorda, escova, banha-se em lavandas, penteia-se, sombreia-se de tons e sobretons, os olhos ganham luas de outras cores, uma lente para a segunda, outra para terça, e assim vai. Não sei como se mete mariposa na mínima calcinha, e nem a mágica para esticar o jeans ao limite das suas soldas, imagino que se contorça lagarta sobre a cama repuxando, esticando, tomando longos suspiros e descansos até que enfim o zíper. Não sei como não lhe comem a borboleta logo na primeira esquina, um suco de laranja sem açúcar, todos os dias, sob os olhos de lobo do dono da lanchonete, dos velhos babões as larvas com seus jornais fumegando cafés e chás nos dias de chuva. Não sei como se mantém no salto quinze toc toc determinando o compasso, ou varejeira no ponto enquanto o zumzumzum não para. Não sei como tolera a feiura dos peões da obra, gaiola de sapos que se engalfinham famintos, e as chupadas de ar, gritinhos, gemidos até mesmo em braile. Quando sol a pino, o céu de fuligem sufocando formigas de destino incerto, trânsito de carne borracha metal – motocicleta, pedinte, playboy -, não sei como consegue: atravessa abelha a avenida ainda cheirando a mel. À tardinha fico imaginando o que se passa no salão de beleza, pés mãos dedos e unhas sob sua custódia, o alicate com precisão arranca talos de carne, apara arestas, desviando olhares que até então morriam no vão de seus seios. Não sei como resiste a tanta inveja de hiena, de mulher malcomida que é a pior das invejas, olho gordo de bicho de maiores espécies. E antes ainda que escureça lá vem ela de volta, maquiagem retocada, cheirando a hidratante de segunda. E provoca na calçada, desloca no coletivo, faz mosca se debater na janela. Na sei como, nem de onde, ainda tira inspiração, após pés mãos dedos unhas, um dia inteiro de labuta honesta, atrás do tapume serventes, pedreiros e mestre-de-obras orquestram chupadas de ar, gritinhos, gemidos, até mesmo em braile. E chega em casa mariposa, e requenta a comida e come na panela; e remove o esmalte, e conta como foi o dia, e abandona o tamanco, e, não sei como, evapora, esvaece. E então escovada, banhada em lavandas, penteada deita-se larva ao meu lado. E se aproxima crisálida e esfrega o talo, refestela-se em meu corpo, passeia minhas mãos sobre as coxas, o colo, sobre o seio pródigo. E ofega resfolega assobia chupando ar. Contorce-se lagarta, repuxando esticando tomando longos suspiros e descanso até que, enfim, a
borboleta. 






quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

PAU-NO-CU




Fokkercem era um tremendo pau-no-cu. Burocrata em precoce fim de carreira. Vingava as tardes modorrentas em que comia livros dia após dia, meses a fio, comendo, agora, a estagiária. As humilhações da adolescência, devolvia-as em dobro: taxiava no subúrbio sábado à tarde, aeronave estacionada no boteco frequentado pelos velhos algozes. Descia pra comprar cigarros e deixava paga a rodada pros perdedores, amigos de infância que do dominó dedicavam-lhe um salve. Mesmo que já não morasse no bairro. Mesmo que fosse lembrado por poucos. Fokkercem era chamado assim porque subiu rápido. No colégio onde estudou, sala com seu nome, placa de bronze e o escambau: fomento em troca da cabeça do japonês que lecionava geografia. Metodologia ultrapassada - justificou o reitor, cifrão tatuado na esclerótica. Depois do segundo divórcio, da perda da guarda do filho, desandou. Da night desembarcava com a tripulação na quebrada, entrava na biqueira de caranga importada, a sentinela dizia: lá vem o Doutor pegar bilú. Um amigo publicitário lhe ensinou os quatro pês do ofício – produto preço ponto propaganda. Ele subverteu, reinventando a sigla: “Putaria pinga e pó!” “Mas são quatro pês, porra” “Então”, ele dizia. Na faculdade as cocotinhas faziam fila pra dar pra ele. Professor descolado, Fokkercem ficava no bar depois da aula, tirava sarro, fumava, pagava cerveja. Pra quem desse - sorte! -, botava o pó. E dava nota. E a nave ia. Até que um sábado não pousou no boteco. Durante a semana não apareceu pra dar aula. Não deu as caras no trampo, faltou na balada, não o viram na boca. A estagiária deu com a fuça na porta. Dias depois, babau. Corpo encontrado de cueca e meia na área de serviço, buraco necrosado na nuca, parecia feito à mão. Aterrissagem forçada. Nem sangue tinha. O cigarro queimou inteiro, copo no parapeito, ao lado do par de tênis que secava. No enterro, estavam todos lá: os perdedores, o reitor de placa na mão, duas ex, a estagiária, o filho, os alunos. “Lá se foi o Doutor”, lamentou o da boca. O publicitário calou - odiava lugar comum. A turma do quinto semestre fez discurso. Mas lágrima, mesmo, não se viu. Ouviu-se apenas um buxixo, um resmungo momentos antes de descer o caixão, e alguém que se afastava sentenciando: “Fokkercem caiu. Tremendo dum pau-no-cu.” 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O ANEL



Trinta e cinco pilas era o preço do anel. Trinta e cinco pilas ele devia pro estivador.
O estivador, um cara justo apesar de bronco, topou não lhe arrancar as entranhas pelas próximas setenta e duas horas, a partir do momento em que abandonara seu pescoço e o colocara de volta ao chão. Então, ele tinha três dias pra conseguir a grana, três dias pra levantar o capital, a bufunfa, como prometera a João – esse era o nome do estivador -, apesar de que já havia passado praticamente dois dias do prazo, dois terços do que lhe sobrava de tempo pra viver, e ele nada de achar solução. Agora, no escuro do quarto – aquele eufemismo da d. Zefa, que insistia em chamar o cubículo de “aposentos”, assim mesmo, no plural -, ele roía as unhas desamparado, desiludido, quase em transe. Uma mosca fez um rasante, deu duas piruetas espiraladas, depois pousou caprichosa na ponta do seu nariz. Por um instante ele esqueceu do destino incerto, da tortura psicológica, do olhar raivoso do João que o fulminara na antevéspera, e passou a vislumbrar a bunda latejante e penujada do inseto estacionado bem na covinha do seu nariz. Trinta e cinco paus. Era o preço do anel. O estivador não estava mesmo para brincadeiras, logo no começo da conversa fez questão de arregaçar as mangas e deixar à vista o pão francês com o nome Adelaide tatuado em vermelho e verde; contraiu o muque uma pá de vezes enquanto se alisava como se o bíceps fosse um gatinho, um felino rechonchudo e teso, e o nome ia e retraía conforme a dança, Adelaide, A d e l a i d e, Adelaide, A d e l a i d e, e o pobre coitado imaginou-se esmagado entre um D e um E, imiscuído bem no meio da sílaba - tudo conforme a dança. Enquanto fitava a bunda trêmula da mosca, que parecia convulsionar de tanto que seu rabo trepidava, traçou uma associação rápida entre o anel de trinta e cinco paus e os círculos concêntricos que rajavam o abdômen do inseto; não pôde conter o riso. Mas conteve, a muito custo, pois não queria de jeito maneira que a pequena se assustasse e saísse voando, não agora que ele conseguiu se distrair um pouquinho e parar de pensar nas vinte e poucas horas que lhe restavam para arrumar, fosse lá como fosse, os trinta e cinco paus, a bufunfa, o capital, o dinheiro equivalente à porra do anel. Não era para menos, quanto devia medir o João, um e noventa, dois, dois e pouquinho? Era só pensar no estivador e lá se ia a paz, a tremedeira voltava e agora ele chacoalhava em sintonia com a mosca, a Luzia, pois acabara de nomear a ilustre visitante, a da bunda multicircunferenciada, se é que esse termo existe; afinal, se o João podia chamar aquele muque disforme e paludo de Adelaide, por que ele não podia atribuir nome à mosquinha, que era muito mais simpática e caprichosa? Mas o fato é que ele estava conseguindo sincronizar a tremedeira própria com a da bunda do inseto, e isso era muito interessante. Ele quase se divertia quando uma gota de suor, melindrosa, escapou-lhe pela testa, driblou as dobrinhas do franzido e escorregou pelo tobogã do nariz bem na direção da Luzia que, inopinadamente, levantou voo e partiu no sentido da persiana. Ele fez menção de acudir, tremelicou, soergueu, mas, enfim, Luzia era uma mosca e já se ia, tinha que ir mesmo. Foi bem quando, no meio da desilusão e do desapego, um fulgor dourado desabrochou na incidência do raiozinho de sol, e ele percebeu, debaixo da persiana, no canto esquerdo junto ao batente, a luminância do anel. Deus, o anel!, ele pensou, o anel do estivador, o anel de trinta e cinco pilas, o anel do João da Adelaide. Riu de nervoso, teve acesso de tosse, falou com as paredes, agradeceu a Deus, ao diabo, à Luzia. A face, jubilosa, se abriu. Foi quando notou, desfocada por causa da proximidade, uma manchinha preta bem no meio do vão do nariz, na covinha. Passou o dedo, afastou a mão do rosto, desenvesgou os olhos: era mesmo... cocô. Cocô da jeitosa mosquinha. Que deselegância, pensou, e tratou de ir ao encontro do estivador, provar que era digno de valor e cumpridor de seus compromissos.