Era apaixonado por duas coisas na
vida: cheiro de mar e azaleias.
Como vivia na maior metrópole da
América Latina, mantinha o odor áspero do mar guardado na memória, e desfrutava
mais amiúde do perfume das azaleias.
Sabia tudo sobre elas: que eram
originárias do oriente, principalmente do Japão e da China; que tinham sido
trazidas para o Brasil por João Dierberger, fundador da frutifloricultura do
mesmo nome em São Paulo, em meados do século passado, e que contavam mais de
oitocentas variedades catalogadas. Sabia que se adaptaram rapidamente ao clima
brasileiro e que se proliferavam com a mesma velocidade invadindo casas, muros,
grades e jardins.
Do mar, sabia pouco. Intuía mais que
sabia. Intuía o significado inconsciente que a plenitude marinha exercia sobre
ele, a fascinação que a profundeza encerrava e que, em última instância, era o
“desconhecer a própria profundeza”.
Porque ele era tão profundo quanto o
mar e tão ansioso quanto as azaleias. Sim, pois as flores escondiam por trás
das pétalas a impaciência que não as permitia esperar pela primavera para
desabrochar. Apareciam intensas e escandalosas no inverno mesmo, bem antes das
outras flores que aguardavam preguiçosamente pela estação propícia. Assim como
ele, que atropelava o presente tentando antecipar o futuro, quando mal superara
o passado.
Também como as azaleias – que foram
encontradas pela primeira vez em solo ressecado – ele padecia de uma sede, que
não era bem de água. E talvez por isso fosse tão fascinado pelo mar. Não pela
água, densa, sufocante. Pelo “cheiro” do mar. Aquele cheiro que ele podia
pressentir ainda na serra, a quilômetros de distância do litoral. Um cheiro sem
perfume, sem sutileza, mas que quando invadia o pulmão lavava a alma,
remetendo-o para o quarto escuro de um momento que ele não podia identificar. Talvez
lembranças do gosto do líquido amniótico.
Mas em um dos muitos dias de solidão,
e por circunstâncias que não vêm ao caso, praticou um crime. E, uma vez
criminoso, fora indiciado, julgado e condenado. E, antes que pudesse rever o
mar, viu-se trancafiado numa cela de oito metros quadrados, num destes
presídios da Capital. Oito anos. Oito anos separavam-no do reencontro com o mar
e com os jardins da Liberdade, de onde trazia as melhores lembranças das
azaleias, brancas, roxas, vermelhas, salmão.
Certa manhã, quando não se permitia
mais sequer se desesperar, levantou-se em direção à grade que dava acesso à
prisão maior que eram os arranha-céus da cidade. Suspirando, baixou a cabeça
batendo-a contra o aço das barras, braços estendidos para fora. Fitou o céu
acinzentado, depois o que sobrava do horizonte e, por força do hábito, mirou o
chão. Fora, talvez, o momento mais feliz da sua vida. Forçou o rosto contra a
grade, contorcendo os olhos, ainda não acreditando no que via: bem abaixo da
janela, do lado de fora da parede do presídio, por entre uma fenda muito
pequena do concreto, uma azaleia perenifólia, roxa, desabrochara vibrante,
mágica. Deslizou o máximo que pode o braço por entre as grades, até entalar o
ombro no pequeno vão, tentando alcançar a flor. No ápice do esforço, pouco
antes de relaxar os músculos e desistir da empreitada, ainda resvalou, de leve,
com a pontinha do dedo, a fina pétala da azaleia.
Extasiado, soltou um gemido, depois
chorou.
Ao se recompor, ainda de frente para a
grade, fechou os olhos descansando a cabeça por entre duas das barras de aço
que o separavam da flor. “Estranho”, pensou. Podia jurar por Deus que sentia
bem leve, no vai e vem da brisa matutina, o inconfundível cheiro do mar...