quarta-feira, 6 de março de 2013

A AZALEIA E O MAR



Era apaixonado por duas coisas na vida: cheiro de mar e azaleias.
Como vivia na maior metrópole da América Latina, mantinha o odor áspero do mar guardado na memória, e desfrutava mais amiúde do perfume das azaleias.
Sabia tudo sobre elas: que eram originárias do oriente, principalmente do Japão e da China; que tinham sido trazidas para o Brasil por João Dierberger, fundador da frutifloricultura do mesmo nome em São Paulo, em meados do século passado, e que contavam mais de oitocentas variedades catalogadas. Sabia que se adaptaram rapidamente ao clima brasileiro e que se proliferavam com a mesma velocidade invadindo casas, muros, grades e jardins.
Do mar, sabia pouco. Intuía mais que sabia. Intuía o significado inconsciente que a plenitude marinha exercia sobre ele, a fascinação que a profundeza encerrava e que, em última instância, era o “desconhecer a própria profundeza”.
Porque ele era tão profundo quanto o mar e tão ansioso quanto as azaleias. Sim, pois as flores escondiam por trás das pétalas a impaciência que não as permitia esperar pela primavera para desabrochar. Apareciam intensas e escandalosas no inverno mesmo, bem antes das outras flores que aguardavam preguiçosamente pela estação propícia. Assim como ele, que atropelava o presente tentando antecipar o futuro, quando mal superara o passado.
Também como as azaleias – que foram encontradas pela primeira vez em solo ressecado – ele padecia de uma sede, que não era bem de água. E talvez por isso fosse tão fascinado pelo mar. Não pela água, densa, sufocante. Pelo “cheiro” do mar. Aquele cheiro que ele podia pressentir ainda na serra, a quilômetros de distância do litoral. Um cheiro sem perfume, sem sutileza, mas que quando invadia o pulmão lavava a alma, remetendo-o para o quarto escuro de um momento que ele não podia identificar. Talvez lembranças do gosto do líquido amniótico.
Mas em um dos muitos dias de solidão, e por circunstâncias que não vêm ao caso, praticou um crime. E, uma vez criminoso, fora indiciado, julgado e condenado. E, antes que pudesse rever o mar, viu-se trancafiado numa cela de oito metros quadrados, num destes presídios da Capital. Oito anos. Oito anos separavam-no do reencontro com o mar e com os jardins da Liberdade, de onde trazia as melhores lembranças das azaleias, brancas, roxas, vermelhas, salmão.
Certa manhã, quando não se permitia mais sequer se desesperar, levantou-se em direção à grade que dava acesso à prisão maior que eram os arranha-céus da cidade. Suspirando, baixou a cabeça batendo-a contra o aço das barras, braços estendidos para fora. Fitou o céu acinzentado, depois o que sobrava do horizonte e, por força do hábito, mirou o chão. Fora, talvez, o momento mais feliz da sua vida. Forçou o rosto contra a grade, contorcendo os olhos, ainda não acreditando no que via: bem abaixo da janela, do lado de fora da parede do presídio, por entre uma fenda muito pequena do concreto, uma azaleia perenifólia, roxa, desabrochara vibrante, mágica. Deslizou o máximo que pode o braço por entre as grades, até entalar o ombro no pequeno vão, tentando alcançar a flor. No ápice do esforço, pouco antes de relaxar os músculos e desistir da empreitada, ainda resvalou, de leve, com a pontinha do dedo, a fina pétala da azaleia.
Extasiado, soltou um gemido, depois chorou.
Ao se recompor, ainda de frente para a grade, fechou os olhos descansando a cabeça por entre duas das barras de aço que o separavam da flor. “Estranho”, pensou. Podia jurar por Deus que sentia bem leve, no vai e vem da brisa matutina, o inconfundível cheiro do mar...