terça-feira, 12 de julho de 2016

Porque a harmonia da coisa reside na, digamos assim, própria desarmonia da coisa. E deve ter um semideus qualquer sentado à beira do lago dos desavisados, numa dessas quebradas do mundo dos que creem, sorrindo e concordando comigo. Ele apanha uma vareta e, remexendo o remanso do espelho d'água, diz que se fosse ateu, que nem eu, também estaria caminhando assim, indeciso, entre a autopiedade e a ironia. Ironia, ah, essa arte de fino trato, ele diz: essa perversão da linguagem. E, por falar em perversão, bem. Deixa quieto. Mas como ele não é ateu, como eu - pois que não desconfia da própria concretude -, não divide comigo as mesmas impressões. Nem assiste sozinho e bufão a programas culinários da H&H - esses ícones desse nosso tempo estranho - enquanto rumina um desconfortozinho moral qualquer. Li algures que alguém tinha a sensação de que havia clicado no "aceito" sem ler o conteúdo da minuta dos termos de uso do app. Da vida. Da diva. Dádiva (ou do divã). Outro, noutro canto, que declinava da vida adulta, tempestivamente - pois que ainda se encontrava no período de experiência e, pera lá, contrato é contrato, né, declino e tchau. Mas meu amigo imaginário, aquele, o da beira do lago dos desavisados, curte beep bop, quer dizer, bebop, gosta de jazz. Daí, quando me vê estacando bem no meio do caminho entre a vaidade e a antropofagia, digo, entre a veleidade e a hemorragia, digo: entre a autopiedade e a ironia, dando uma meia-volta sobre o calcanhar a lá Michael Jackson e apanhando um CD do Charlie Parker, ele sorri satisfeito. Sorri bem arreganhado mesmo - um esgar, como diria o escritor -, se levanta, apanha o chapéu e samba. E quando dou por mim ele já não está mais ali, digo: aqui (digo: (...) ). Já que ninguém vai entender, pra que a gente vai explicar, né não? Deixa o Charlie tocar. Bora lá.