segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O ANEL



Trinta e cinco pilas era o preço do anel. Trinta e cinco pilas ele devia pro estivador.
O estivador, um cara justo apesar de bronco, topou não lhe arrancar as entranhas pelas próximas setenta e duas horas, a partir do momento em que abandonara seu pescoço e o colocara de volta ao chão. Então, ele tinha três dias pra conseguir a grana, três dias pra levantar o capital, a bufunfa, como prometera a João – esse era o nome do estivador -, apesar de que já havia passado praticamente dois dias do prazo, dois terços do que lhe sobrava de tempo pra viver, e ele nada de achar solução. Agora, no escuro do quarto – aquele eufemismo da d. Zefa, que insistia em chamar o cubículo de “aposentos”, assim mesmo, no plural -, ele roía as unhas desamparado, desiludido, quase em transe. Uma mosca fez um rasante, deu duas piruetas espiraladas, depois pousou caprichosa na ponta do seu nariz. Por um instante ele esqueceu do destino incerto, da tortura psicológica, do olhar raivoso do João que o fulminara na antevéspera, e passou a vislumbrar a bunda latejante e penujada do inseto estacionado bem na covinha do seu nariz. Trinta e cinco paus. Era o preço do anel. O estivador não estava mesmo para brincadeiras, logo no começo da conversa fez questão de arregaçar as mangas e deixar à vista o pão francês com o nome Adelaide tatuado em vermelho e verde; contraiu o muque uma pá de vezes enquanto se alisava como se o bíceps fosse um gatinho, um felino rechonchudo e teso, e o nome ia e retraía conforme a dança, Adelaide, A d e l a i d e, Adelaide, A d e l a i d e, e o pobre coitado imaginou-se esmagado entre um D e um E, imiscuído bem no meio da sílaba - tudo conforme a dança. Enquanto fitava a bunda trêmula da mosca, que parecia convulsionar de tanto que seu rabo trepidava, traçou uma associação rápida entre o anel de trinta e cinco paus e os círculos concêntricos que rajavam o abdômen do inseto; não pôde conter o riso. Mas conteve, a muito custo, pois não queria de jeito maneira que a pequena se assustasse e saísse voando, não agora que ele conseguiu se distrair um pouquinho e parar de pensar nas vinte e poucas horas que lhe restavam para arrumar, fosse lá como fosse, os trinta e cinco paus, a bufunfa, o capital, o dinheiro equivalente à porra do anel. Não era para menos, quanto devia medir o João, um e noventa, dois, dois e pouquinho? Era só pensar no estivador e lá se ia a paz, a tremedeira voltava e agora ele chacoalhava em sintonia com a mosca, a Luzia, pois acabara de nomear a ilustre visitante, a da bunda multicircunferenciada, se é que esse termo existe; afinal, se o João podia chamar aquele muque disforme e paludo de Adelaide, por que ele não podia atribuir nome à mosquinha, que era muito mais simpática e caprichosa? Mas o fato é que ele estava conseguindo sincronizar a tremedeira própria com a da bunda do inseto, e isso era muito interessante. Ele quase se divertia quando uma gota de suor, melindrosa, escapou-lhe pela testa, driblou as dobrinhas do franzido e escorregou pelo tobogã do nariz bem na direção da Luzia que, inopinadamente, levantou voo e partiu no sentido da persiana. Ele fez menção de acudir, tremelicou, soergueu, mas, enfim, Luzia era uma mosca e já se ia, tinha que ir mesmo. Foi bem quando, no meio da desilusão e do desapego, um fulgor dourado desabrochou na incidência do raiozinho de sol, e ele percebeu, debaixo da persiana, no canto esquerdo junto ao batente, a luminância do anel. Deus, o anel!, ele pensou, o anel do estivador, o anel de trinta e cinco pilas, o anel do João da Adelaide. Riu de nervoso, teve acesso de tosse, falou com as paredes, agradeceu a Deus, ao diabo, à Luzia. A face, jubilosa, se abriu. Foi quando notou, desfocada por causa da proximidade, uma manchinha preta bem no meio do vão do nariz, na covinha. Passou o dedo, afastou a mão do rosto, desenvesgou os olhos: era mesmo... cocô. Cocô da jeitosa mosquinha. Que deselegância, pensou, e tratou de ir ao encontro do estivador, provar que era digno de valor e cumpridor de seus compromissos.