segunda-feira, 3 de agosto de 2015

DESPAUTÉRIO

Não pretendo vender meu celeiro. Não que não aprecie sua oferta, caro amigo, mas é que os tempos são de crise, você sabe... Forjei fianças, fraudei o fisco, assinei promissórias e o diabo a quatro, mas levantei o capital. Quando todos estavam em êxtase com as “partículas de ouro” que disseram que sopravam por aí, fiz minha parte... Não, não sou trouxa. Dormi ao relento, comi migalhas e senti o acero do aço em minhas costas. Fiquei pneumônico, perdi cabelo... Mas meu celeiro está aí. Bonito, assentado, viçoso.  Milho, soja, arroz, ervilha... De certo que a praga dos ratos me deu algum trabalho, mas vai pra mais de mês que não vejo unzinho sequer por aqui. Agora, depois de tudo isso, me aparece você e simplesmente me propõe a compra? Ah, mas não vendo. Não vendo mesmo. Isso é que não. E logo você, homem letrado, quase erudito... Escreve no Diário da Província o quanto somos provincianos – e isto certamente que me ofende, já que moro no norte da ilha, não é? –, diz que temos medo do desenvolvimento, da modernidade, mas esquece de mencionar que o tal “desenvolvimento” vem no esteio do nosso trabalho. Nas costas do labor do provinciano aqui. Não quero ser deselegante, mas você bem sabe que também não posso deixar de ser sincero. E, na maioria das vezes, a verdade dói mais que mão queimada em fornalha. E olha que minhas mãos eu já queimei e não foi uma só vez, não. Mas a língua, nunca. Nem uma única vez nessa vida inteira de cristão temente a Deus. Por isso, caro “amigo”, esqueça que eu existo e que um dia você passou por estas bandas, e que se interessou por minhas terras e por meu celeiro. Porque eu vendi minha juventude, caro amigo; vendi as poucas oportunidades de sair desse fim de mundo; vendi – a preço módico – a raspa do tacho da felicidade e quase – veja bem: quase – vendi minha alma. Mas, meu celeiro, meu caro amigo, eu não vendo. Passar bem.